Aparando arestas

quarta-feira, 3 de maio de 2006

Memórias da Rua 15

Sou homem, velho e escrevo aqui do número 80 da rua 15, edifício...
Vivo cá desde sempre, pelo menos é o que me parece...
Não costumo ter muito sono à noite, algo incomum aos velhos, eu sei.
Conheço essa rua, assim como as ranhuras e mofos dessas paredes.
Uma rua qualquer para qualquer um.
Um lugar especial para mim e ... Amâncio.

Um homem velho e só, é o que sou já há algum tempo.
Talvez desde sempre...
Das coisas que penso, dos momentos,do dia-a-dia,
não tenho muito a dizer.
Penses o que quiseres.
Não é difícil imaginar a vida de alguém como eu...
Não sei mais das tradições e nem se foram inventadas as minhas memórias.

Foi através dessas vidraças, que vivi meus melhores momentos.
Tenho tudo anotado aqui...
Registros sobre o perímetro correspondente aos
números 70 a 90 dessa rua 15, desde 1958.
Toda a sorte de situações...

Lembro do dia em que conheci Amâncio...

Em um madrugada fria, estava eu sentado a olhar pela
janela quando o vi pela primeira vez.
Senti uma inexplicável vontade de lhe oferecer uma xícara de
chá quente mas, não o convidei.
Fiquei ali, vendo-o percorrer todo o meu perímetro e sair.
Passou pelo número 92 e não mais o enxergava na penumbra...

Durante o dia a rua repleta de sons, de odores, pessoas, automóveis,
sempre algo novo, diferente, tudo muito veloz.
Não parece a mesma à noite e eu,
observando a tudo muito atento, esperava secretamente que aparecesse mais tarde...
Passava das duas da manhã quando notei que lá estava ele.
Meu coração disparado pelo ballet de folhas que Amâncio orquestrava.
Parecia tão sereno...
O semblante satisfeito por preparar o palco para o espetáculo do dia seguinte e,
naquele momento, era ele próprio o astro reinando solo.
Assobios a conduzir a dança...
Um largo sorriso a iluminar-lhe o rosto.
Os dedos calejados vez ou outra afagavam o cão que
surgido meio de repente, maculava seus montinhos nas calçadas.
O homem sorria.

Foi assim durante todo aquele outono.
Toda noite, Amâncio aparecia naquela mesma hora,
entrando na minha vida pelo 79 e sumindo logo a seguir pelo 92.
Por toda aquela estação, durante todas as noites,
eu preparava sua xícara de chá e nas manhãs seguintes,
eu as jogava fora...

Última noite do outono. A última xícara de chá daquela estação.
A madrugada mais fria de todas.
Como de costume, sentei-me à espera de Amâncio.
Havia me preparado e tinha certeza de que finalmente ele tomaria o chá comigo.
Vi sozinho, uma vez mais, o dia amanhecer.
Ele não apareceu naquela noite e nem nas seguintes...

E eu que até hoje guardo a sua xícara,
sequer sei se deveras chamava-se Amâncio,
ou se foram inventadas minhas memórias.