Aparando arestas

sábado, 14 de janeiro de 2006

um passeio

Sábado. Dia quente. Faziam 38°.
Na rua havia pessoas por todos os lados.
O sol nas pestanas, o hálito quente do seu quarto e
os carros da Hernani Mello expulsaram-na da cama.
Acordou na hora do almoço.
Havia deixado seus sentidos numa mesa de bar.

Foi até a cozinha.
O caos estava formado.
A pia imunda abraçava toda a sorte de talheres, copos e panelas.
Numa falha tentativa de organizar as peças do quebra-cabeças bolorento,
foi esfaqueada pelo ranço daquelas louças.
Virou o rosto, esticou o pescoço e apertou a goela.
Ainda ficou pensando no que fazer, no que comer...

Procurou um cigarro e não tinha.
Pegou o livro, algum dinheiro e as chaves de casa.
Enfiou tudo de qualquer jeito numa bolsa.
Pedalou duas quadras e saciou seus desejos.
Sentada do lado de fora do restaurante, na mesa 21,
fumou um cigarro, tomou uns goles de coca e foi feliz.

Era o seu Ademir quem atendia naquele dia.
Um sujeito simpático e de olhos vivos.
Cabelos ralos, pouca estatura e uma boca dessas bem fininhas.
Conheciam-se há algum tempo.
Era freguesa assídua e apesar de o Ademir ser atencioso com todos,
acho que gostava dela um pouco mais.
Talvez por isso naquele dia tenha se
incomodado tanto com o fato da moça estar só.
Enquanto servia seu almoço,
comentou diversas vezes que ela não merecia aquilo.
Indagou sobre o motivo de sua solidão e
lamentou que ela estivesse triste.
Mas ela estava ótima e rodeada por velhos amigos:
Garcia Marquez, Marlboro e Magrela, sua bicicleta.
Tentou convence-lo de que estava enganado...
Ele não entendia...

Antes de se levantar para pagar a conta, o velho garçom parou à sua frente e recitou uns versos.
Emocionaram-se. Ele, com os olhos marejados, fez questão de anotar o poeminha num guardanapo fazendo votos de que ela se lembrasse daquele dia para sempre.
Ela ficou comovida com o gesto e pôs o guardanapo dentro do livro.
(Ainda guarda o papel.)
Despediram-se com um "Deus te abençõe", "ao senhor também. Obrigada".

Chegaram em casa. A bicicleta foi dormir na área de serviços, um cigarro se pôs entre seus dedos e Garcia Marquez saltou à sua frente.
Ela folheava Cem Anos de Solidão.